Página 17 - Cerimonial Magazine 2014

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Nós não somos uma classe
unida
”, desabafa Simone, não dei-
xando de referenciar a importância que
tem a Casa do Artista, “
que se deve ao
Solnado, ao Varela, a Manuel Maria,
e Armando Cortez, ainda bem que é
um sitio onde as pessoas que têm
menos dinheiro podem acabar os
seus dias... pagam conforme as suas
reformas...
”.
No espaço de dois anos e meio,
Simone perde os pais, aqueles que
tinham sido os alicerces de uma vida,
mas quis o destino que pelas duas
vezes Simone tivesse que abando-
nar a igreja, para ir para o palco, “
era
o meu trabalho. Qualquer ator ou
atriz faz isso em qualquer parte do
mundo, a não ser que seja muito rico
e diga: pronto, eu pago a casa que
está esgotada e fico três dias em
casa! É a tal velha frase que parece
mentira,
The Show must go on...
foi violentíssimo, deixou marcas e
mazelas, deixou mágoas e buracos
na alma,…
”.
Varela foi o seu companheiro de 23
anos de vida, fala dele com saudade e
nostalgia, “
foi uma relação de amor
e paixão... e depois, entendimento,
cumplicidade, ternura, birras, discus-
sões..., algumas divergências, duas
pessoas com personalidades muito
vincadas. Ele gostava de chuva, eu
gostava de sol... Ele deu-me uma
serenidade e tranquilidade e eu dei-
lhe as minhas gargalhadas e a minha
alegria de viver
”.
O lugar no coração de Simone não
voltou a ser ocupado, depois da morte
de Varela, já lá vão 17 anos,
às vezes não me apetece a
solidão, mas habituei-me a
ela...
”.
Tem igualmente saudades da Simone
de outros tempos, tem saudades dos
fi lhos quando eram pequenos, tem
saudades de jogar
bowl ing
com os
netos, tem saudades dos natais com
os pais,… “
mas consigo falar disso,
e isto é uma frase do Varela,” com
uma saudade lavada
”.
Ainda tem presente o som das cha-
ves na porta, quando o Varela chegava.
Cumpre religiosamente com um dos
seus últimos pedidos, “
deixo sempre
uma luz acesa, porque ele quando
estava mais doente dizia-me sempre
assim “Oh Cantigas, deixa-me uma
luz”. Eu chegava às três ou quatro da
manhã, estava sempre uma luz acesa
cá em cima, e um dia cheguei aqui,
e foi horrível estar tudo às escuras
”.
Janta no mesmo restaurante, e come
sempre na mesma mesa, há 26 anos,
o motivo não passa tanto pela comida,
mais pela necessidade de conversar,
estou cansada do tabuleiro
”, desa-
bafa. Sente-se protegida no Bairro Alto,
se um dia precisasse de proteção
mafiosa era só estalar os dedos! E
é isto que eu sou...
”.
A sua geração é detentora de uma
vida artística mais prolongada, para
Simone associa-se ao facto de não
terem medo de exibir as rugas e as
suas vivências, “
esta nova geração
temmedo de envelhecer, eu percebo,
porque hoje vive-se muito da ima-
gem, da beleza, do corpo, de não ter
rugas, …isso é uma coisa que dura
um tempo, mas não dura sempre!
Simone partilha a casa com a Maria-
zinha, o seu alter ego, uma personagem
fictícia, que a ajuda a levantar a moral,
quando começa a quebrar, ou está
mais em baixo, “
falo sozinha, mas
não é porque esteja maluca
”,
apressa-se a justificar.
Eu vivi muito, tenho vivido muito,
e espero continuar a viver muito
até que a vida me deixe. Vivi coi-
sas muito boas, tive experiências
maravilhosas e pisei palcos muito
bonitos e tenho um cagaço de andar
de avião que não se aguenta.
” O que
não a impediu de viajar um pouco por
todo o mundo, não esquece a primeira
vez que foi a São Tomé, de onde é
originário o seu avô e os seus bisavôs.
Acho que me posso considerar uma
mulher feliz embora perfeitamente
utópica. Mas caramba “tive doente”
e agora tenho saúde, tenho uns filhos
e netos que estão, bem e com saúde,
são boa gente, e pessoas equilibra-
das, gente com a cabeça no sítio...
consigo ter uma casa pequenina
mas é minha, está paga, não devo
nada às finanças, a maior parte das
pessoas no país neste momento não
tem isto.
” O balanço de uma vida feito
na primeira pessoa, de uma vida que
nunca terá um final, de uma vida em
que nunca se dirá tudo. De uma vida
que é só a vida da Simone, porque não
tem outra, mas tem a vida que entra em
todas as nossas vidas.
a